quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Negrume Hodierno

“O cão não vê utilidade em carros elegantes, nem em casarões, nem em roupas de grife. Um graveto serve para ele. Um cão não se importa se você é rico ou pobre, talentoso ou sem graça, inteligente ou burro. Dê a ele o seu coração e terá o dele.”

John Grogan


São vários narcisos em um espaço só. Pessoas que com a dor e a exaustão buscam satisfazer o seu prazer. Um hedonismo contraditório, um gozo imediato e em longo prazo. E eu aqui em meu posto, no momento de observador, ou melhor, apreciador de todo esse espetáculo da evolução humana alheia. Fico esperando algum momento, um alvo para me satisfazer. Meu globo ocular funciona como mira, uma mira elaborada como as das metralhadoras israelitas mais sofisticadas. E é o esperar deste momento que me deixa vivo no meu tédio sonolento que me foi adequadamente reservado. Um movimento estático-móvel de corpos sem órbita, corpos que gritam o discurso: Preciso me encontrar. Como já dizia Candeia ao seu amigo Cartola em sua angústia antepassada.

A busca da concretização é extremamente onírica em um mundo fragmentado que dilacera seres humanos com tanta eficácia como uma guilhotina. As pessoas não se conhecem, não conhecem seus objetivos, estamos todos perdidos. A única sorte – que é cega – é que o poder das deserções chegou a uma escala tão elevada que já não somos mais capazes de sentir a angústia que Candeia sentia em seus anos rebeldes. Está ai o motivo da citação de John Grogan iniciar o texto. Os animais estão anos luz na nossa frente quando o assunto é valores e sinceridade. Para se ter um pouco de noção deste caminho apocalíptico que a humanidade está seguindo o ideal seria ter um encontro com Milton Santos, que se não fosse o documentário do cineasta brasileiro Sílvio Tendler seria impossível realizar esse importante encontro, pois Santos morreu buscando um outro caminho que fosse contra essa perversidade humana.

Bom mesmo seria reciclar o romantismo revolucionário do Sol nas bancas de revista. A busca de um propósito que era comum a todos da juventude explosiva daquela época que se podia sessentar. Mas não vou dizer que tudo está acabado, pois afinal temos nosso majestoso Funk, a atual MPB que nos representa. E uma mocidade que luta pelo que quer: mulheres, roupas, carrões, jóias. Tudo que nos faça sentir poderosos, um poder que acaba com o lançamento do próximo Iphone.

Um brinde a falta de comprometimento que o capitalismo bestial, porém necessário, nos obriga a ter. Ele ocupa nossa mente com estratégias de ganho e aplicação de capital e ofusca nossos valores que passam a ser outros, que comportam o canibalismo: o beneficio desonesto de uns sobre outros.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O Ar

O canto das aves do alvorecer me entristecia. Estava tranqüilo com a leveza daquilo que me fazia ver. Não passavam carros, não havia trânsito, eu me movia devagar para poder melhor escutar o que eu não podia olhar, e assim me envolver com as pessoas que ali pareciam permanecer. A cada deslocar era uma nova voz, um cantar. Era essa a satisfação que eu tinha, sem poder enxergar, as vozes eram o bastante, pois naquele instante me soou bem um gargalhar. Aproximei-me do lugar, me surpreendi, com dois rapazes e uma garota que estavam ali. Contei um pouco da minha história, falei sobre a demora de caminhar sem pressa pela praça dispersa. Disse a eles a respeito do meu namoro com a lua, e se tinha algo que eu realmente queria ver nessa minha vida era ela desnuda preenchendo o resto da minha face desfalecida. Falei, falei e falei. Pois afinal era esse o contato que eu podia ter com aqueles ingratos, ingratos pela falta de compaixão com a minha excitação de estar compartilhando com eles tudo que eu tinha de melhor: a minha eloquência.

Fiquei um pouco pasmo, porém não demonstrei, era fácil não demonstrar. Mas claro! Naquele momento tive uma pequena introspecção: como um cego de nascença iria revelar a expressão da sua vivencia? Era uma evidencia que aqueles tolos, na certa, não faziam pormenor idéia sobre o que se tratava realmente aquela minha prosopopéia. Era um espanto tal situação, todos três enxergavam muito bem o mundo a sua volta, mas aquilo não era nem um pouco prazeroso quanto o esboço que era minuciosamente projetado na minha imaginação. Pensei. Não precisamos mais do que comida para comermos e música para ouvirmos indistintamente, o resto é pleonasmo. E foi ai que percebi que eu era um cara sortudo por ser um cego astuto. Prolonguei um pouco mais o final da conversa para ver se eles notavam alguma diferença na estética. Eram tão insensíveis que mesmo tendo o sentido da visão não conseguiam notar a diferença entre um ator aposentado e um cego mal-acabado. Deixei de lado aquele trio prejudicado e fui me entreter com a brisa da noite do alvorecer.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Tarde de Inverno

Uma escuridão surgiu na minha janela, uma escuridão surgiu na minha janela, uma escuridão surgiu na minha mente. De repente um pingo começara a cair do céu, estava caminhando rumo a caminhada que se desfalecia junto aos pingos de água que agora caíam. Uma parada, pois a incerteza era. A casa de Deus tornou-se minha casa naquele momento, foi um abrigo, porém ainda sim frágil contra todo o poder daquele dilúvio que se atrevia a retirar telhas do teto da casa do Senhor. Conformei, rezei, pedi, agradeci, já estava ali. Foi tudo uma curta viagem ao interior, dessas que você vai para se encontrar com seus avós, na morada barroca; dessas que você vai, e se perde na complexidade do seu eu. Sentia o cheiro de mato molhado e da chuva que o molhava, sentia a pele macia e boa de sentir, a pele do aconchego. E as sensações aconteciam como na infância, com aquela inocência de uma criança. E a propósito, as crianças eram as que mais aproveitavam aquela água virgem que escorregava pelo petróleo libertino. Eram miúdos legítimos.

E eu ia caminhando, caminhava, me encontrava, a inspiração veio com um toque de amor demais, como naquelas belas canções.

O mundo virou de ponta cabeça. Agitou-se. Os pingos começaram a ficar escassos, não tinham mais aquela significância nem aquele significado. O caos se esparramou e agrediu a todos que estavam por perto. Os automóveis passavam pelo cruzamento sem se lembrar das drásticas conseqüências. O divorcio com a vida não tinha a menor importância para ninguém. Todos estavam ali, a procura do seu prazer imediato, dos seus objetivos particulares. Hedonismo. Porém de repente um barulho estrondoso parou, parou a todos, mas não por interesse pelo outro, e sim por um susto individual de cada indivíduo que estava por perto. Era um guri, que sentia seus últimos suspiros no centro do cruzamento, tinha sido pego por um carro que não se incomodava com que estava a sua volta. Todos empacaram, deram uma pequena olhada, e em poucos segundos o trânsito retomou a sua normalidade. E o garoto insignificante continuava no centro do cruzamento se contorcendo e esperando não mais esperar. Foi quando uma escuridão surgiu na minha janela, uma escuridão surgiu na minha janela, uma escuridão surgiu na minha mente. De repente um pingo começara a cair do céu, e o menino foi se desmanchando junto às lembranças de sua morte precoce. E os automóveis continuavam a transitar sem se preocupar...