sábado, 21 de agosto de 2010

La Rioja


Estou aqui no saguão do meu prédio, de um lado uma escadaria que me apresenta uma proposta de vida em um lugar que desconheço as alegrias, do outro, a porta da minha casa, cujo conforto é farto. Situo-me mais próximo das escadas do que da porta, isso significa que a possibilidade de eu sair rolando é mais provável. Se for o caso de eu não estiver viva quando isto chegar às suas mãos, não se torture, a culpa não foi sua. Mas acredite: a morte é melhor que a vida longe de ti. Talvez o motivo maior da angústia que sinto seja o Frank Sinatra cantando no andar de baixo. Isso porque a madrugada só esta começando, e, em pouco tempo, os gritos virão e a minha vida se decifrará num inferno. Prefiro acabar com ela antes que isso aconteça.

Não se precipite quando ler esta carta. Vá até a padaria mais próxima e compre aquele chocolate que eu gostava, e, sozinho, delicie-se, com a certeza que estarei próxima. Nos momentos de maior intimidade eu estarei lá.

Saudade é uma coisa boa, que esquenta uma dor, que por sua vez esquenta o amor. Esquenta mas não queima, só aquece, conforta. Saudade é saudável. Talvez ela se transforme em presságio de reencontro mais digno de menção, ou, quem sabe, ela se torne, com o passar dos anos, uma dor intolerante.

Não sei se outra mulher vai bater à sua porta, mas o que sei é que ninguém vai te amar como nos nossos tempos. Serei eu, só eu. A sua família te abandonará aos 35. Seus irmãos mudarão de país e a sua mãe vai apodrecer na cadeia depois de tentar esfaquear o cara que matou o seu pai. Nem mesmo aquele que você achava ser seu melhor amigo estará perto de você para te acudir, todos estarão longe. Como sei disso? Já estou do outro lado, aqui se sabe de tudo. Depois de se drogar de todas as maneiras será a sua vez de tentar a morte, mas você vai fracassar, pois não terá a quem enviar uma carta como esta.

A vaidade não te deixará ir, assim, sem se comunicar; para que futuramente seja lembrado pelos que o verão como um herói de uma época sem pretensões. Não faça do fracasso algo abortivo, entenda-o somente como cacos, plausíveis de serem reconstruídos. E assim você desiste dessa tolice e vai, aponta e vai.

Um dia, em uma conversa indireta com um mestre em odontologia, foi-me dito para que eu ficasse atento com os defeitos, pois são maiores proporcionalmente, mesmo que em quantidades mesquinhas. Escondo os meus debaixo da terra, para poder sujar minhas mãos outra vez.

27 de janeiro de 1987.
Catarina.





Catarina,*

A lágrima veio como um rojão. Um alívio para as palavras em fogo coladas a minha pele. A garganta fechou por um momento e eu achei que sufocava. O ar estava quente e o meu quarto era um cubículo abafado. Ou talvez eu estivesse muito grande ou muito inchado tentando te alcançar. Não era uma sensação humana. Sentia os meus pés como patas pesadas e respirava emitindo um ruído alto e intenso.

Não fui à padaria comer o chocolate, não senti fome. Dei outro nome ao vazio que ficou depois da carta e enchi de ódio doído de paixão por você. Estou com raiva, Catarina. Estou te odiando mais do que jamais te amaria na minha vida e dói, terrivelmente, pois sei que você se contentaria com isso. Estou com nojo da sua memória grudada na minha pele como sebo. Estou morta com o seu peso jogado as minhas costas. E você gosta. Onde quer que esteja você gosta.

Apesar disso, sinceramente não desejo que vá para o inferno, não desejo nem que parta. Gostaria de te ver rolando escada abaixo cem vezes. Amarraria-te em mim se pudesse, e rolaria eu mesmo só para sentir cem vezes a sua dor.

Estou num ônibus Catarina, estou indo para Famatina. Cadeira 23, do lado da janela, aquela onde fizemos amor pela primeira vez. Sinto o cheiro da sua calcinha. E tudo o que eu queria agora é que alguma outra coisa nos acertasse e acabasse com tudo de uma vez. Isso me excita.

Mas infelizmente para você eu não posso acreditar em nada disso e você está certa, a culpa é da minha vaidade. Se este é o meu pecado, é também o seu e estamos todos condenados. Estou partindo para o seu velório e você terá a sua carta resposta. Sujarei meus dedos de terra para enterrar o meu ódio ao seu lado, depois voltarei para La Rioja, tomarei um banho, antidepressivos, conhaque e dormirei. Se eu estiver viva de manhã não quero ver a sua sombra. Pegue esta carta e vá embora. Se eu morrer meto-lhe um tapa na cara, um beijo e vamos juntas.

18 de fevereiro de 1987.
Viviane.





*A segunda carta é de autoria de Bruna Marta.

domingo, 8 de agosto de 2010

Manchete: Maluco vestido de galinha mata açougueiro

Norte da Califórnia, 1967. Naquele tempo os açougues eram avulsos... Um homem alto, ruivo, forte de gordura, de barba espessa, vestindo uma camisa xadrez curtida, que já não aguentava mais o volume do corpo escandinavo, entra no talho e encara o velho franzino atrás do balcão. Roy Stern é o nome do ancião. Ele passou grande parte de sua vida naquele local, atrás do balcão, matando e vendendo, vendendo para comer, comendo para matar, e matando para, quem sabe, não morrer. Desde que seu pai, fazendeiro rico, homem influente na região, havia perdido tudo no início do século, Roy permanecia naquele posto de sacrificador. Aquele comércio era a única coisa que o fazendeiro havia deixado, quando no verão de 1930, depois da depressão do ano anterior, acertou um tiro na cabeça. O velho comerciante tinha uma relação contígua com a morte. Pelo menos uma vez por dia ensanguentava sua camisa branca e, resmungando confissões de sua infância, pendurava pedaços no matadouro.

Dunn Huply, o homem da barba espessa, mais conhecido como “Dunply”, havia regressado do Alasca a pouco, depois de uma dura temporada de experimentação de solidão humana. A sua tolerância era precária com pessoas, só dialogava bem com animais. Dunply sabia da fama de açougueiro sanguinário de Roy, e há dias não mantinha uma relação harmoniosa com ele. Não se intimidou com a expressão forte estampada no rosto de Roy, e foi logo fazendo seu pedido, que mais parecia uma ordem:

- Eu quero um frango vivo!

Roy, que ainda mantinha a testa franzida respondeu com um sotaque interiorano:

- Só trabalho com animais mortos, se quiser ver bicho vivo vá pra outro lugar, e não venha me aporrinhar novamente, seu grande pedaço de merda!

Dunply, que apesar de intolerante sempre mantinha uma excêntrica calma, virou as costas e encostou a porta ao sair. As cordilheiras já alcançavam o sol quando ele saiu, bufando, rumo ao seu casebre que não era tão longe dali. Não tirou da cabeça aquele insulto.

Ao chegar a casa - já era noite - deixou seus pertences em uma bancada e foi direto para oficina que ficava nos fundos da ruína de madeira que estava abrigando-o nos últimos tempos. Com certa dificuldade acendeu uma lamparina ligada a uma fiação no alto do cômodo, e quando a luz veio Dunply foi, fugaz, ao encontro de um armário, acabado, escondido nos fundos da oficina por uma grande quantidade de entulhos. Tirou tudo de cima e ao abrir o armário seu rosto ganhou uma nova feição, ele sorriu. Um saco cheio de penas brancas. Pegou uma cola de sapatos que estava por ali e começou a se banhar com aquilo. Depois que seu corpo estava completamente coberto de cola, ele foi, calmamente, colocando pena a pena nos seus membros, até ficar completamente preenchido, deixando exposta somente a espessa barba ruiva.

Dunply pegou uma serra cega que estava em sua bancada e abandonou sua casa. Com passos largos, acelerados foi em direção ao açougue de Roy Stern.

A lua cheia iluminava o ambiente e, naquela noite, Dunply pôde ver suas penas brancas atingirem o tom de sua barba espessa.