sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Primeira edição de "O Olhapim"

O Olhapim é uma publicação trimestral que busca alargar o diálogo com a rua e tudo aquilo que sobre ela caminha.

Esta primeira edição é composta por crônicas, fotografias e ilustrações, que se materializaram a partir de incursões feitas na noite da cidade de Belo Horizonte.

Acompanhe pelo site: www.oolhapim.com.br

sábado, 10 de dezembro de 2011

A observação

Espinoza observou que todas as coisas querem perdurar em seu ser.

Limão gostaria de sempre ser limão,

E o amor não abriria mão de ser o então sentimento que é.

Se, em algum momento, não mais existissem os mares, qual sentido teria escrever o mar na lousa...

Ou desenhar uma canoa.

Acho que quando observou, Espinoza perdurou em seu ser.

domingo, 13 de novembro de 2011

O animal e o mar

Tinha quase dois dias que tirara do animal o pelado.

Deixou para trás aquilo que toda vida fora.

Vestiu-se de uma seriedade frente ao mar,

E deixou cair dos olhos gotas de outros tempos.

Quando percebeu a amizade que do mar vinha, acatou a imensidão e inundou-se de um vestido de flores.

domingo, 16 de outubro de 2011

Fazenda: o poema fazendo-se

Do pé de elefante fez-se um garoto.

A fazenda nasceu de um grão de milho.

Mais pedante era o túnel,

Que envenenava.

A vaca era só bico.

E o céu nasceu depois, quando já havia coisa sob ele.

A lama do porco só foi capaz de existir pela graça do lápis marrom.

O branco fazia a fazenda brilhar.

O absurdo aconteceu, a galinha engoliu o mundo.

E todos que ali estavam seriam vítimas de reciclagem.


Luiz Eduardo Cunha e Pedro Cunha

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Conto "Rito da Rosa" no Jornal "O Ponto"

"O Ponto", jornal laboratório do curso de jornalismo da Universidade FUMEC, publicou, em sua edição de julho/agosto, parte do conto "Rito da Rosa".


Caso você queira ler o conto na íntegra, acesse aqui.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fios de Sol

Vi uma clave de sol na parede do banheiro.

Era feita de fio de cabelo,

Ou era a água caindo sobre o corpo?

O banho produz clave de sol.

Seja pelo cabelo ou pela água que sai do chuveiro,

Ou, até mesmo, por alguém que cantarola.

(A nota se forma por sobre as flores do azulejo.)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Rito da Rosa

Conto "Rito da Rosa", premiado na segunda edição do "Prêmio de Literatura Universidade FUMEC"





Rito da rosa


Rosarito, México. Lá pelos idos de 1960.

Depois de duas noites mal dormidas, preenchidas por whiskys caros vindos diretamente das mãos de fazendeiros ricos do Tennessee, Adele Nuñez acorda. Olha para baixo e percebe seu pau esfolado e, ao lado, quatro garrafas vazias. Nenhum sinal de gente, só ela no quarto e um filete de luz querendo arrombar a cortina.

Todos os bêbados de Rosarito já passaram por Adele; ela é como uma rainha mexicana. Eles a chamam de "Adele Seductora". Rafael é um deles. Havia sofrido muito com a chegada dos americanos. "Vieram para tomar Adele. Como vou viver sem ela?", perguntava a si mesmo, cabisbaixo. Rafael perdera a virgindade com ela, quando, aos quatorze anos, ia de sua casa para o centro, onde morava sua tia. Outro desarrumado, que descobrira o sexo com “A Seductora”, foi Valentin. Assim conhecido tanto pela valentia, quanto pelo nome que sua mãe havia lhe dado. Valentin não aceitava de forma tão pacífica a visita dos burgueses. Cortava os membros de cada sujeito mais pálido que passasse por ali. Tinha a ficha mais criminosa que um criminoso pode ter. Sempre que ia preso dava um jeito de sair, não aguentava ficar muito tempo longe de Adele.

Adele gostava dos americanos, via neles certa autoridade de homem predador que lhe satisfazia domar. Queria comer o cu de todos que passassem por Rosarito. Isso a deixava insana de tanto prazer. Ela se entregava a qualquer um deles. E, em troca, só pretendia os traseiros. Só.

San Quintín, México.

Deitado nas areias de San Quintín, mal vestido, barba por fazer, perturbado pela aspiração de narcóticos, totalmente entregue ao mundo e aos prazeres da vida, cigano, descuidado do dia de amanhã, Kenneth olha para um lado, ninguém, noutro, nenhuma pessoa, só areia e mar. Provavelmente a noite anterior fora de excessos, excessos dos quais Kenneth não se lembra. A única coisa de que se lembra e que, aliás, fora o motivo que o trouxera até o México, é da fuga de sua mulher com um escritor do Arizona. Ken tinha uma vida tranquila, pacata, com sua esposa. Viviam em uma cidade pequena do Colorado. O setor turístico estava em crescimento por lá, e, enquanto sua mulher trabalhava como atendente em um hotel robusto, Ken dava duro na lavoura.

Há duas noites Lucinda não dormia em casa, dizia a Ken que o hotel estava precisando dela com alguns afazeres, e, de fato precisava mesmo. Robert Paulsen, escritor em início de carreira que estava hospedado no hotel, se dizia apaixonado por Lucinda.

Ela, por falta de algo melhor, já ia para a terceira noite na cama de Robert. Robert lhe prometera o mundo, e Lucinda, extasiada, aceitara. Foram juntos para o México na manhã seguinte.

Kenneth só percebeu a falta de Lucinda dois dias após a fuga. Resolveu que iria buscar sua mulher, pois a tradição diz que a traição fere o orgulho de um homem. Descobriu, por intermédio do dono do hotel, que o seu destino seria o México, e assim foi feito. Pegou um trem de carga, atravessou o Arizona e foi parar em Heroica Nogales, divisa entre o Estado americano e o México. Passou por Mexicali, Tijuana, Ensenada e agora estava em San Quintín sem saber onde estava.

Rosarito.

Adele estava se preparando para a noite, últimos retoques, e sempre antes de sair passava pela imagem da Virgem de Guadalupe, que ficava no alto da sala em uma estante de vidro, e pedia proteção. A saia curta e o salto alto davam poder para Adele ter em suas mãos qualquer homem de Rosarito: americano, mexicano, rico, forte, charmoso, elegante, qualquer.

Chegou a um bar que ficava entre o centro e a praia. Ao abrir a porta, todos os homens olharam para ela; todos já a conheciam, todos a desejavam. Ela olhou o bar, cadeira por cadeira, em uma passagem rápida, e escolheu o felizardo. Adele sorriu para ele e saiu. O jovem levantou-se, deixou no balcão a tequila que não havia chegado ao fim e foi, demente, seguir “a sedutora”. Nas areias os dois arrancavam os trajes em uma ação animalesca. Adele mostrou seu órgão, o rapaz virou-se e em um ato seco a penetração veio à tona.


San Quintín.

Ken foi até a venda mais próxima à procura de comida. Seu organismo não aguentaria por muito tempo sem suprimentos, sem água. Precisava colocar o corpo em ordem. Ao chegar a uma pequena tenda, um mexicano ranzinza e narigudo foi logo dizendo: “¿Que quiere?”

Quando a fala terminou um rádio sem sintonia tentava comunicar algo: “O escritor-viajante Robert shhhhhiiii sssshuuu estará em Rosarito, shiiiiiiiiiiiii ssssssshhoo...”

Kenneth pegou uma sacola com uns pães, uma garrafa dágua e saiu sem pagar e sem dar tempo para o mexicano rabugento ter alguma reação.

Ken já estava na estrada. “Nem todos os mexicanos são ranzinzas e chatos”, pensou quando um Pontiac Bonneville 57 parou. Era um jovem executivo de Los Angeles. “É, só podia ser americano, nenhum mexicano faria esse tipo de coisa por um estranho.” E foram os dois seguindo em alta velocidade pela costa oeste do México.

Rosarito.

A luz do Sol estava forte e já começava a incomodar, obrigando o mocinho a abrir os olhos. Devagar, o nervo óptico foi formando imagens, e Adele não estava mais lá. Era como um sonho e um pesadelo ao mesmo tempo: ter passado aquela noite maravilhosa com ela e acordar sem ela. É um contraste que machuca. A noite eterna era melhor. A morte era melhor. Qualquer coisa era melhor. Mas acordar sem Adele, isso, não.

Rosarito.

O carro parou em uma ruazinha estreita perto da orla, Kenneth agradeceu a carona e se despediu. À procura de bebida e mulheres, Ken encontrou um bar que ficava entre o centro e a praia. A tarde caia. Sentou-se no balcão e pediu uma tequila, duas, três..., quatorze.

Kenneth tenta abrir os olhos, sente uma sensação estranha.
“Oi? Lucinda? Lucinda?!”
Um travesti lambia o umbigo do anônfalo.

Rosarito.

Eu não conseguia me mover. Ela estava adormecida, em cima de mim, pressionando o meu corpo, como uma criança que dorme sobre um brinquedo novo, para não ser surpreendida logo de manhã. Já não sabia mais qual seria o meu destino, não sabia se a busca por Lucinda ditaria o meu caminho. Estava completamente confuso, pois algo de extraordinário havia me acontecido naquela noite, com aquela mulher moribunda, naquele quarto antiquado. Cômodo arcaico que revivera a doçura de abrigar o deleite humano. As paredes se movimentavam em um palpitar sincronizado com o movimento dos nossos corpos. Foi uma fantasia interminável, uma festa a dois, na qual o mundo poderia acabar, e não nos importaríamos. Ela me chamava de “Biju”, enquanto escoriava minhas costas e gritava Adele Nuñez, como quem se apresenta a um desconhecido. Pude perceber que Adele não era como qualquer uma, não era dessas de aventura imediata. Adele era uma medusa que te apresentava às perdições do inferno terrestre, te levava à descoberta da sexualidade satânica, te induzia ao alto grau do prazer. E, quando o Sol surgia, tudo aquilo que se tinha vivido com Adele fazia parte de você, e não te deixaria mais em paz. Distanciar-se dela era uma tentativa de sobrevivência fracassada.

Eu estava de olhos abertos há alguns minutos, esperando o que seria de mim quando ela acordasse, esperando que algo maior me dissesse o que fazer, esperando que os olhos morenos de Adele se abrissem para acabar com as minhas dúvidas infortunadas. Eu queria viver com Adele o amor de um casamento tradicional, queria ter filhos, ter uma casa em qualquer lugar mais sossegado, queria voltar a trabalhar na lavoura, no Colorado e encontrá-la no fim da tarde com uma roupa leve à minha espera, fresca como o sopro dos ventos ianques que demonstravam tranquilidade. Mas, quando me vinha à mente o rosto de Lucinda, todas as minhas idealizações com Adele começavam a se perder, e o ambiente escurecia. As esperanças que me restavam se esvaíam pelos ares, e o gosto torto da saudade cutucava meu peito, dizendo para eu me abestalhar.

Adele acordou exalando sussurros pertinentes: “Oh macho que me trouxe a vontade de arder novamente, fique comigo pelo resto dos nossos tempos e lhe dou a anseio pela satisfação de todos os sentidos que um homem jovem pode ter. Vou lhe dar prazer! Nos empanturraremos de amor sob pérgulas intermináveis que irei construir com a engenhosidade que me foi dada. Venha e sabotaremos a vida e a morte em um ato único, como seres inseparáveis e imortais. Venha ser meu prodígio, pois assim dançarei a dança do chapéu todas as noites de precipitações turbulentas, só para acalmá-lo enquanto adormece. Venha, Kenneth! Venha comigo!”

Mergulhei em um dilema interminável. Mas a obsessão me fez ir à procura do rosto de Lucinda. Não aguentava o fardo da traição. Saí em busca da mulher.

Rosarito.

Havia pouco tempo que ele caminhava por ali. Um sujeito magricela, pouco cabelo, bem penteado, que já havia atingido um tom de branco sépia, por conta da idade avançada. Vestia um terno encorpado, assim como o cachimbo que carregava na boca. Andava por Rosarito como um pedestre que procura por um sentido na vida. Boris Stuart era o nome que seus pais haviam lhe dado quando, em um inverno severo de 1890, ele nasceu na Inglaterra. Era um inglês típico, com uma visão que ia além, ultrapassava seu monóculo de grau elevado e ia perto dos céus. Boris buscava soluções para as dificuldades dos seres humanos. E, no ano anterior àquele, ele fracassou tentado inventar uma máquina visionária para auxiliar a memória e guardar conhecimentos. Os militares ingleses, para quem Boris apresentava seus inventos, não aceitaram e condenaram tamanha engenhosidade, alegando loucura e imprudência colocar em máquinas informações de tamanha importância como eram aquelas do exército.

Boris Stuart, desiludido, foi buscar a vontade pela existência em novas terras. Não suportara mais viver na Inglaterra depois de tal rejeição. Foi uma vida de lealdade e esforço. Toda carga de conhecimento adquirida era depositada na bandeira; todas as noites, mergulhado em álgebra, eram pela bandeira; todas as negações às propostas ao mais robusto deleite londrino eram pela bandeira. E ser enxotado daquela maneira, daquela forma; a bandeira não merecia mais sua presença, e Boris merecia sentir seu coração pulsar novamente. Foi para o México, e, vagando por uma daquelas recém-avenidas de Rosarito, encontrou um homem, barbado, que estava embaixo de uma árvore, deitado sobre um papelão.

Boris, poliglota, o indagou:
– O que faz aí, sem nada a fazer?
O homem girou a cabeça rumo aos céus e, ao mesmo tempo em que coçava o nariz, respondeu:
– Estou a tempos tentando me comunicar com os insetos que bebericam o pólen destas begônias.
Boris rebateu:
– Mas você acredita mesmo que eles irão se manifestar?
O homem resmungou:
–Já se manifestaram antes.

Boris, cego pela sede de inventos e descobertas, sentou-se ao lado do homem, sem perceber que o manifesto ao qual o homem se referia eram as brutas picadas. E ficaram por ali discorrendo a respeito de estratégias para melhor se expressarem diante dos insetos.

Wiltshire, Inglaterra.

Membros do exército inglês planificavam a busca de Boris. Todos ao redor de um monumento megalítico, mais conhecido como Stonehenge, oravam em busca da sobriedade de espíritos desencarnados. Eles acreditavam que uma força sobrenatural traria Boris. Mas, por falta de respostas e ligações com o mundo espiritual, os superiores das Forças Armadas britânicas mandaram para o México o mais competente homem do exército, Clever Clistwood, um delinquente fardado, um assassino com licença para trucidar, um maníaco que havia nascido em berço bélico. Foi à procura de Boris, com olhos que refletiam o sangue do inventor. Não era possível duvidar da capacidade sensitiva de Clever. Certamente Boris já estava morto e enterrado, sob o céu azul costumeiro de Santa Guadalupe.

Rosarito.

E assim foi, caminhando, com um turbilhão de pensamentos confusos que constantemente lhe tateavam a cabeça. Caminhava, o movimento de suas pernas eram tão mecânicos que ele não as sentia mais; caminhava. Tudo o que estava a sua volta, a novidade mexicana, não passava de um enquadramento turvo de uma visão perdida; caminhava. Em meio a tantas nuvens, um aglomerado de insetos chamou a atenção de Kenneth; parou, sentou-se, e ali ficou. A Lua já atingia o céu, e o azul desse se transformava em preto; o dia logo seria noite. Kenneth deitou-se sobre um papelão e fechou os olhos.
Abriu os olhos, e um estranho estava observando-o. Um sujeito incompreensível. Ken nunca havia visto algo parecido. Uma magreza que por ali não se via, uma lente espessa que encobria seu olho esquerdo, um paletó que, apesar de belo, já estava bastante maltratado pela incoerência do uso. O homem fez algumas perguntas a respeito dos insetos que ali estavam, e Ken não quis prolongar muito. Sem ter um destino aparente, o indivíduo sentou-se ao seu lado e uma conversa estapafúrdia se estabeleceu:

– Os insetos já se manifestaram antes, pode acreditar!
Duvidoso, o homem exigiu:
– Eu quero que isso parta deles novamente.
Quando Kenneth percebeu que estava dando informações a um estranho, perguntou:
– Qual é mesmo o seu nome? De onde você vem?
O homem, de trejeitos excêntricos, começou a se apresentar:
– Eu sou Boris, inventor que trabalhava pela bandeira britânica. Vim para o México, pois os descabeçados me enxotaram alegando loucura, dizendo que meus inventos seriam maléficos para eles. Eu estava caminhando para a grande ideia: através de uma máquina eles, homens do exército, poderiam encontrar qualquer pessoa, viva, que estivesse no planeta. Pense, não haveriam crimes, todos os culpados seriam facilmente encontrados e degolados. Essa seria minha grande invenção. Mas antes mesmo de eu expor a minha criação, eles me afugentaram com fortes ameaças que alcançavam a morte.”

Aquelas palavras invadiram os ouvidos de Kenneth e a sua cabeça projetava a imagem de Lucinda. Os olhos de Ken se encheram de brilho, e ele quis logo prolongar a conversa.

– Mas o que te trouxe ao México?
Boris respondeu:
– O México não seria tão óbvio para os ingleses, compreende?
Kenneth, com a ambição de se aproveitar da inteligência do estranho, quis averiguar:
– E essa sua ideia? A máquina já está pronta?
Boris se assustou com a curiosidade de Ken e revelou:
– Não. A máquina é apenas um projeto, ela está muito bem arquitetada na minha cabeça, mas não poderei fazê-la. É uma invenção muito perigosa. Uma revolução mundial poderá acontecer se essa máquina vir a existir.
Ken, com os olhos fixos no inglês, suplicou:
– Mas eu preciso dessa máquina!
O inglês não se ateve:
– Calma! Que angústia é essa?
Kenneth despejou seu sofrimento:
– Minha mulher fugiu com um escritor que se hospedava no hotel onde ela trabalhava. Eu não aguento esse ferimento.
Indignado com o sofrimento pouco, Boris foi franco:
– Tamanha imbecilidade! Não acredito que queira encontrá-la. A traição não tem perdão, segue com a sua vida! Veja o meu caso, fui traído por uma legião inteira. O exército me traiu, a bandeira me traiu, os ingleses me traíram, mas vou me afeiçoar. A partir de agora, poderei utilizar meus inventos para o bem; já estava cansado de matar. Por minha causa, os ingleses ganharam a Segunda Guerra, por minha causa milhares de pessoas foram mortas. O gosto da matança não me seduz mais.

Novamente aquelas palavras invadiram os ouvidos de Kenneth e, naquele mesmo instante, a imagem de Adele veio-lhe à cabeça.

– Boris... só há uma forma de retribuir esse esclarecimento. Venha! Vou levá-lo ao verdadeiro céu de Santa Guadalupe.

Os dois se levantaram calmamente e foram rumo à morada da santa viva: Adele Nuñez.

Rosarito.

Adele ainda não havia se vestido da noite de sono. Um barulho acanhado a fez levantar e ir até a porta. Kenneth a agarrou e, em seguida, sem entender muito bem e sem se apresentar, Boris mergulhou no bulício. Os três entraram em um círculo que se fez ordinário. Tapas e cacetes eram distribuídos, sem ver para onde iam e de onde vinham. Sem a fala, a expressão utilizada era a corporal, os olhares quase não se encontravam. Adele saiu de cena para fazer um café e, enquanto isso, os dois rapazes se divertiam como dois esposos, numa comunhão harmônica que não existia entre um homem e uma mulher. Passaram-se dias e a situação do triângulo não se modificou. A única mudança foi o grau de intimidade, que se elevou. Adele já sabia qual era o melhor encaixe, Boris gritava no tom certo, e as carícias de Kenneth eram mais bem distribuídas. O gozo era sincronizado, e não se via balbúrdias entre os cônjuges.

Em uma noite quente, um vento que vinha do mar fazia com que a cortina da casa de Adele se remexesse. Os três amantes dormiam juntos, e o som da brisa parecia trazer algo que seria definitivo para muitas vidas.

Rosarito.

Clever passeava por Rosarito. Sua chegada dava um tom mais fúnebre à cidade. Seus pés iam de encontro às areias, e as ondas do mar estavam agitadas e encostavam-se nos sapatos escoceses. Era uma madrugada quente que recebia um sopro do oceano. Clever já sabia seu caminho; ele teria de virar à esquerda. Um coqueiro comprido era sua referência e fora debaixo dele, o único que havia por toda a extensão da praia, que Adele seduziu o primeiro homem de sua vida, e desde então a árvore passou a ter uma fertilidade dúbia: amores e cocos. Clever sentia o cheiro de safadeza e seguia adiante. O coqueiro se aproximava cada vez mais.

Lázaro Cárdenas. Para Clever parecia mais nome de ditador espanhol conturbado pelo fascismo extinto, mas era o nome da rua que estava à esquerda do coqueiro, indicação de que ele já estava próximo. Casas que mais pareciam ruínas, eram as da Rua Lázaro; e ele continuava no seu trajeto, olhando de um lado para o outro e testando seu olfato cada vez que via uma janela entreaberta. Era um louco. E, como todos os ingleses, muito bem disciplinado. O objetivo a alcançar teria que ser finalizado, e nada mudaria isso.

Clever chegou à tão esperada janela. Lá estava Boris, deitado sobre uma cama de tijolos que se fundia ao chão, bem no estilo mexicano da época. Junto a ele, mais dois corpos inominados. Como inglês não pula janela nem entra pelos fundos, Clever foi diretamente até a porta principal para arrombá-la, mas, para sua surpresa, ela estava aberta. Entrou na casa como quem molha os pés nas águas do mar. Quando chegou ao cômodo, os três estavam dormindo, nus. Adele estava no meio, com sua bunda atraente virada para cima entre as cinturas peladas dos dois homens. Clever aproximou-se da cama e, sem deixar que o som da morte ecoasse pela vida dos que ali estavam, virou o pescoço de Boris Stuart. Acabara de morrer um grande homem. Para Clever, não era nada mais do que uma meta atingida. Agora ele ia até a outra ponta da cama e o mesmo foi feito com Kenneth; morreu sem ver o rosto de Lucinda. Adele ainda não havia acordado. Clever iria para o terceiro assassinato quando Adele, ainda adormecida, virou os olhos fechados para o céu. Naquele momento, Clever paralisou. Os traços de Adele lhe chamaram a atenção como nenhuma arma de guerra havia chamado. Clever estava prestes a executá-la à sua maneira preferida, mas parou seu ato de modo a deixar qualquer soldado soviético maravilhado. Clever Clistwood não tinha ação. Algo de muito sério estava acontecendo, pois nada era capaz de parar um assassino como aquele, viciado no seu ofício. Ele foi se aproximando e, ainda com Adele sonolenta, começou a beijá-la. Beijava-lhe a barriga, os braços, as pernas robustas e morenas, a boca carnuda. Adele, sem perceber que aqueles lábios não eram de nenhum de seus cônjuges, deixou-se levar pela ação involuntária. Quando Adele abriu os olhos, não se assustou – afinal, aquilo era só mais uma história da vaidade e do egoísmo humano – continuou com a sua ação, que agora era voluntária, e começou a apalpar os corpos falecidos. Clever não se importou e, por cima da mão de Adele, foi seguindo o mesmo movimento, era como uma comunhão entre mortos e vivos; não havia a menor diferença, pois o que estava em jogo era somente o desfrute do corpo. A metafísica era anódina.

Nas semanas seguintes, Clever provaria o melhor dos deleites da sua vida. Nenhuma das execuções que preenchiam sua extensa lista lhe deram tanto prazer como Adele. A morte de Boris Stuart daria a Clever a condecoração e um salário gordo e vitalício. Ele prometia a Adele uma mansão em Liverpool, cidade onde nascera e vivera toda a sua infância e parte da adolescência. Mas Adele não dava importância a essas trivialidades. O acúmulo de bens, fortunas e casarões, tudo isso a enojava. Adele via beleza no efêmero. Para ela nada era mais prazeroso do que a partícula de tempo entre o antes e o depois do gozo; olhares que se encontram e, em segundos, se perdem como se nunca tivessem se esbarrado; sensações como essas que levavam Adele a ter simpatia pelo socialismo, porém o trauma de infância e o grande segredo que ela não revelava nem mesmo a si própria, a sua estirpe, a mantinham distante de teorias como aquela. Esse foi o motivo que trouxe Adele ao México quando, aos dezenove anos, depois de expor a sua preferência sexual ao seu pai, fora deserdada.

Adele foi o ultimo filho de Josef Vissarionovitch Stalin com uma camponesa polaca que ela não chegou a conhecer. Teve uma juventude de sofrimentos. Torturas que se equiparavam às dos presos de guerra de seu pai. O que Nikita Khrushchov – homem que sucedeu o bigodudo no comando da União Soviética –, na sua angústia, prevendo a derrota de sua nação, não suspeitava era que a única causa que levara a Rússia à vitória sobre a Inglaterra fora o poder de sedução de um filho gay de Josef Stalin.

Com a obstinação de Adele em ficar em Rosarito, Clever Clistwood enviou a Londres um comunicado formal sobre a morte de Boris Stuart e sobre a beleza que o México exalava naqueles tempos. Falou da verdadeira santa mexicana, Adele Nuñez, e de tudo que ela havia lhe proporcionado.

Depois de alguns dias, grande parte do exército britânico estava em Rosarito. Adele satisfazia os oficiais das forças armadas e era chamada por eles de “A Nova Rainha”.

No verão de 1969, aquilo que um dia havia se chamado Reino Unido desapareceu. Por falta de homens para o combate, a Inglaterra perdeu a guerra. A União Soviética se apossou de todo o território britânico. O vermelho da rosa fez-se verdade.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Desejo

Saber já não carecia.

Sabiá, sim.

O traço acima do A acentuou a vida (palavra).

Pássaro é o que o homem queria ser na verdade.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Criando Miró


a Luiz Eduardo


O menino pinta um menino com cabeça vermelha e mãos azuis.
A mãe o observa e o repreende dizendo que uma pessoa não pode ter duas cores.
O menino chama-se Joan e não se atem à crítica materna.
A sua invenção inventa Miró.

domingo, 1 de maio de 2011

Dádiva da mãe Amália

(Nota sobre a aparição de discos voadores)


- Pep, olha bem que mama comprou para voi!

- Que mama?

- Este é um dispositivo substancioso que armazena canções.

Josep, desapontado com suas bolachas, resolveu aquietar. Foi até o móvel no vão da parede, agachou empinando a bunda para a vida e arremessou pela janela todos os seus discos, um a um.

domingo, 24 de abril de 2011

Vó Helena

(Entre-Rios Jornal, 09 de Abril de 2011)

Recebi de minha mãe a triste notícia de que minha avó havia partido. Tanto tempo sem vê-la e se vai, assim. Não foi por falta de aviso; não era de hoje que minha irmã falava dessa possibilidade, sempre com um tom de quem precisava de ajuda. E eu dando importância à trivialidades, incapaz de pegar um telefone e fazer uma ligação. Era o costume de não a ter por perto que fazia de mim um relapso. Nunca tive essa figura tão adorável que se tem quando garoto. A avó. Àquela que, sempre afetuosa, vem a casa e traz qualquer bobagem que te deixa feliz, que exalta qualquer coisa que o neto, ainda insignificante perto da grandeza do mundo, faça, construa; um caderno de terceira série, um desenho bobo, coisas assim que pra ela tem um valor imenso, que não sabemos. É uma figura que mesmo não presente, mandava uma carta, fazia uma ligação, me chamava de “Pedrinho”, assim como ninguém me chama.

Fui crescendo sem vê-la bordar. O tempo foi passando e ela já não ligava mais, já era mais velhinha, estava tão sozinha. Eu, em contrapartida, fui me tornando moço, adquirindo consciência, deixei o caderno da terceira série, fiz bons amigos, aprendi a dar valor a vida – que quase perdi em um acidente de bêbado –, vi minha família me erguer, passei por poucas e boas, vi o nascimento de um irmão, briguei com a outra irmã que já tinha, fui a praia, me diverti, sentei em mesa de bar, conversei fiado, fiz poesia, encontrei um amor para vida toda e, ainda assim, não aprendi a ser neto. O tempo passou e agora aquela única senhorinha, mãe de meu pai, que pouco conheci, já não estava mais aqui. Lembro bem de sua estatura mediana, sua pele branquinha, os cabelos encaracolados clarinhos e curtos, a delicadeza de seus movimentos e, o que mais ecoa no meu ouvido, o jeito como ela me chamava, “Pedrinho”. Um “Pedrinho” que nunca vou esquecer. O “Pedrinho”, aquele menino gordinho que deixou o Rio de Janeiro quando seu pai morreu, e que deixou lá toda e qualquer história que fosse ligada à figura paterna. A única coisa que restou foi uma velha camisa do flamengo. A possibilidade de um dia ser o menino da vovó ficou pra trás. Cresci levando bofetada de minha mãe sem uma avó para amaciar o tapa. Aos domingos não tinha para onde ir, sempre um dia triste na semana. Nunca pude dizer “os docinhos da vovó” ou dar um abraço apertado e ficar escutando as histórias de sua juventude. Acho até que por isso sempre gostei de História no colégio e, depois, acabei optando pelo Jornalismo, sempre querendo saber mais sobre o passado, faminto pelas anedotas de outros tempos.

E hoje, depois desta notícia, a partida de minha avó, senti falta de algo que nunca tive, lembrei de coisas que nunca existiram. Chegou até a vir à minha mente a imagem de uma praça extensa, cheia de pombos, um carrinho de bebê e uma velhinha sentada junto a um moço mais jovem, ambos com as mãos no carrinho, balançando, enquanto o bebê, adormecido, sonhava com a vida que o esperava.

Agora o que eu pretendo é esperar. Esperar um tempo, bom tempo, até que me venha, cutucar a perna, uma netinha, para que eu possa niná-la enquanto sonha e chamá-la pelo diminutivo; para que ela se lembre de mim pelo jeito como eu a chamava, de Heleninha.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Carnaval

Dia de Reis...

O início de um beijo ao revés

Eu vou pegar o buzu

Eu vou pegar na buzunfa

Eu vou pagar com cheque

Eu vou ficar em cheque

Eu vou abordar a polícia

Eu vou entrar no bulício

De lá não vou sair mais

Vou perder a minha paz

Vou ser um moço escroto

Minha maturidade acabou

De noite vivo em copo de bebida

De dia dou-lhe um tapa na barriga

Em final de briga

Veja só que teimosia.

Pertinente ou não

Já não me preocupo com a coerência

Ela se forma é na impertinência

Com os amigos de repique eu não me preocupo mais

Bala espoleta cacete feijão

Estilingue porrete um soco, a mão

A desordem só existe porque há ordem

E o homem só existe porque há mulher

E qual é o homem que não quer

Ficar debruçado no colo aconchegante

De uma mulher arfante?

Não obstante, um homem disse que a experiência não valia

Que o colo de uma mulher o estremecia

Ficar de bruços naqueles seios macios

Se perder naqueles pequenos rios

Não era atividade para aquele jovem

Que se deliciava na dureza

“A noite não combina com a moleza”

Dizia o herói da safadeza

A boêmia ganha toda a sua poesia é no fim do dia

Quando as portas se abrem

E a festança de comes e bebes ressurge no caldo que se dava aos pobres nas portarias dos conventos.

Ah! Esses eventos da mocidade, a juventude se embebeda de tanta liberdade

A beata se torna pagã

E quando (depois da folia) se apresenta a luz do dia

Estão todos juntos na padaria

Procurando bolo pão café ambrosia

Para degustar a beleza que é a burguesia

E assim

Aproveitar o que é ruim

A quarta-feira de cinzas

ao lado da avó Josefina

tricotando roupas finas

que nunca serão usadas.