quarta-feira, 23 de junho de 2010

Sombreiro


“Televisão me dá um sono.”

Falou pro quarto vazio, enquanto andava devagar pelo corredor da casa escura.
Ela já havia se acostumado com a escuridão dos porões de outrora. Era março, e isso a impedia de se aventurar pelas ruas de Botafogo. O único momento em que saia de casa a passeio era no mês de fevereiro, quando os bairros do Rio de Janeiro estavam cheios de pessoas sorridentes curtindo as festividades da época do ano. Tinha pavor a ruas solitárias, e de poeiras de vento leve.

Chegou ao quarto e deitou a cabeça no travesseiro. Lembrou-se das histórias que sua avó lhe contara quando moça. Vovó Josefina dizia coisas sobre a senzala e costas calejadas de tanto carregar chicotada. Mas quando vinha a sua mente a penumbra dos cômodos subterrâneos, as chibatadas de sua avó pareciam mais carinho em neném recém nascido. Tudo que ela via em suas lembranças era a sombra do quarto semi iluminado e uma toalha que o sabujo enxugava o suor depois de...

..., e a porta se fechava em um barulho ensurdecedor que a acalmava.

Aquela visão que fora plantada no seu cérebro ainda permanecia, entre o som do silêncio. As noites tinham um ritmo semelhante. Ela ficava de olhos abertos, encolhida, coberta por uma manta de lã, sob a auréola de uma lamparina barata. De lá, não se ouvia muito, somente ruídos, sussurros. Sons que ficavam na divisa entre o real e o imaginário. A madrugada se estendia, e ela permanecia acordada com medo de sonhos agitados. Angustiada pelos murmúrios, dizia palavras:

“Olá escuridão, minha velha amiga.”

Tentava dispersar-se em coisas poucas. Conversava com as paredes, enquanto sua visão percorria os cantos do quarto. Um processo contínuo que se conservava até o sol aparecer.

Na manhã seguinte, primeiro dia de abril, ela se levantou e, certa de que não aguentaria se guardar até o próximo carnaval, foi até o banheiro e se enforcou com a toalha de suor de sabujo.

2 comentários:

  1. Olá Pedro,

    Te devo uma visita há meses...
    Gostei do que vi.
    Desejo sorte aos seus personagens! E atenção a você, que os observa. Único capaz de dar-lhes vida, ou tirá-la. A percepção é sua, entre cores ou p&b, entre o som ou o silêncio, deixe que eles estampem seus olhos, percorram os canais auditivos, despertem seu olfato e vai você tatear suas vidas e colocar no papel o recorte que considerar importante - só não deixa de publicar aqui pra gente ler! rs...

    Abraço

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  2. Um abismo lirico. Sua letra é marcante. Vem e ataca as profundezas de nossa solidão.
    Amei.

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